imagine você mesmo, com uns 12 anos. você não é pequeno o suficiente para ser criança, mas ainda não é grande o suficiente para ser adolescente. é uma transição para esta nova fase da vida. você está mudando e começa a ter uma percepção de si meio diferente. os gostos mudam e novas necessidades surgem.
quem é você e o que você quer?
agora ainda mais fundo na memória… não só você começa a mudar sua percepção de si, mas também começa a vir um bichinho do desejo. e ele traz a maldição que levamos para vida adulta: se importar demais com o que os outros pensam da gente, em como eles nos percebem.
você pode ser madura agora, mas não negue que boa parte da sua juventude foi sobre o que ser para ser desejada. e se você for uma mulher hetero, o que ser para atrair os olhares do meninos, homens.
NA MINHA ÉPOCA!!!!
brincadeira, mas NA MINHA ÉPOCA, tínhamos uma visão muito bidimensional do feminino. ou você era a menina-garouta-hiper-feminina que claramente estava atrás da aprovação masculina, ou você era a meio nerdola, meio feia, muito tímida, mas muito amiga dos caras, tu se acha superior, mas no fundo você quer a mesma coisa: aprovação masculina.
nem vou entrar no mérito do que eu escolhi, mas o que me fica marcado desta época era como o feminino era fútil. o feminino era idiota, era besta, era burro. e, por mais que o feminismo entre na sua mente, ainda fica um resquício desta concepção.
corta para muitos anos depois. eu me vejo desesperada para tentar achar algum hobby, alguma coisa para fazer sozinha ou acompanhada. o que não te falam do feminino é que você cresce sem poder gostar de coisas, você até tem uma parada ou outra que gosta, porém, tu joga tudo pro ar sempre que aparece alguém novo na sua vida. a mulher muda de gosto conforme troca seus gostos amorosos.
enfim, hobbies. eu estou na procura do que fazer, até tenho algumas coisas, porém, lendo um texto da Ana Vitória Rocha, fiquei um pouco encafifada com as próprias coisas que eu gosto. o texto é sobre mulheres fazendo coisas, se divertindo, saindo e o desconforto que isso pode gerar. o lance é que mulher não tem hobby, ou se tem é cerceado pelo ambiente doméstico e pode ser interrompido a todo momento, ou seja, o que a mulher faz é quase irrelevante, ela pode fazer enquanto não é demandada, mas precisa parar quando é chamada.
quais são esses hobbies? ler, desenhar, jardinagem, crochê…
ao fazer o comparativo com os hobbies dos homens, todos evolvem muito tempo fora de casa, ou atividades que raramente são interrompidas. homens arrumam seus carros, jogam videogame, sai para jogar futebol, pescar…
o que temos de resultado é: o que é masculino é importante e o que é feminino não é.
porém, ainda sim não nos impede de procurar algo que seja a nossa carinha, a nossa identidade…
aesthetic, male gaze e conservadorismo
como dito anteriormente, mulheres não foram ensinadas a gostar de coisas por si próprias e a ter uma identidade para si. no fundo, poderíamos ser o que fosse na juventude, contanto que na vida adulta nos resumíssemos a duas coisas: mães e esposas.
porém, falar que não tentamos buscar outras coisas fora disso é mentira. e acho que aí a moda, o estilo, vem como sendo um espaço possível para criarmos algo que mostre quem somos. moda também é um espaço mais feminino, ainda que a alta costura seja masculina. mas gosto da moda da rua, de como cada mulher, dentro da sua rotina, busca encontrar e mostrar seu estilo para o mundo.
e assim, eu honestamente quero pular todo o papo sobre moda e cultura de massas. desde sempre existiram nichos e infinitas características dentro deles, mas eu quero chegar logo na parte do aesthetic…
este termo poderia ser só uma palavra nova para falar de algo velho, contudo, acho que a ideia de aesthetic traz algumas coisas além.
bom, como disse, mulheres sempre procuraram estilos para si e coisinhas para si. e na contemporaneidade a coisa fica mais intensa porque conseguimos, dentro do possível, não ser só mães e esposas. podemos ser isso, mas podemos somar mais coisas. como disse também eu vivo, e muitas outras mulheres também, o problema de tentar entender o que eu gosto e o que sou dentro de um mundo cheio de opções. e como disse também, nós, mulheres crescemos sem opções do que ser e gostar. o mundo não foi feito para nós experenciarmos ele, quem o vive são os homens.
enfim, é aqui que entra um pouco o que penso sobre aesthetic e, algo que deixei meio jogado mas vou trazer aqui, o que no fundo podemos falar sobre feminilidade.
aesthetic é essencialmente um termo que vai se juntar a outro para definir um estilo, ou uma trend. o lance é que você vai ter dentro de uma caixinha tudo que precisa para se definir. então, em um estilo específico você vai vestir certos tipos de roupas, ouvir certos tipos de músicas, gostar de fazer determinadas coisas e ter determinada rotina. está tudo compartimentado para você levar para casa. acho que o aesthetic pode ser um excelente pontapé para você começar a entender o que você é e o que gosta. a magia da busca pela individualidade está em experimentar o que faz sentido. então, se você usa este conceito dentro de uma busca consciente sobre si, beleza, siga sua vida feliz e contente, PORÉM, o problema é outro.
a primeira camada do problema é que, no fundo, você nunca vai achar autenticidade dentro de uma aesthetic e isto só vai te levar a um consumismo extremo. tudo isso é montado para que você acredite que só vai ter determinado estilo somente com determinado tipo de roupa, determinado perfume, sapato, caneca estilosa ou sei lá qualquer outro objeto que se encaixe na ideia. você não vai ser autêntica sem entender o que combina com você. se você precisa CONSUMIR, ou seja, gastar dinheiro e tempo com algo, talvez seja o momento de parar e pensar para ver se o que está vendo faz sentido para você.
(não vou nem entrar no mérito do quanto a vida aesthetic te coloca numa pira de que tudo que você faz precisa ser performático, instagramável, mas, isto está dentro do pacote…)
se o consumismo não é suficiente, a gente entra em mais um camada: o male gaze. a grosso modo, male gaze é o termo usado para definir a perspectiva masculina dentro do cinema. então, quando criticamos uma personagem feminina escrita por um homem, estamos fazendo uma crítica ao male gaze. tudo a MUITO grosso modo. a busca pelo estilo próprio dentro da esfera do aesthetic também tem suas pitadas de male gaze.
hoje existem infindáveis opções de aesthetic. barbie core, tomato girl, clean girl, thought daughter, dark academia, light academia, cottage core, bimbo core, boho chic, pilates princess… enfim, só procurar um pouco na internet que você vai encontrar algo novo. e, ainda que esses estilos tenham suas diferenças, o que tem de comum neles: mulheres extremamente magras, com roupas desconfortáveis e que, de alguma forma, estão procurando a aprovação masculina, mesmo as que querem pagar de intelectual.
bom, lembra daquele papo da adolescência que somos apresentadas para dois tipos de opções, ser garouta feminina ou ser meio nerdola? o lance é que a coisa foi atualizada. ainda temos essas opções, mas elas nos são apresentadas de uma forma que é muito mais apelativa ao olhar masculino do que ao nosso olhar feminino. beleza, a gente acha umas coisas ali bonitas de fato, porém, até termos consciência, no fundo fazemos tudo para ter atenção dos machos.
e a forma como esses aesthetic são montados trazem uma fantasia do cérebro lisinho tal qual peito de frango. além das roupas chics que não fazem sentido nenhum num clima brasileiro (tirando tomato girl rs), é exaltado uma vida pacata sem pensamento crítico algum, apenas se imaginando relaxando numa tranquila casa no campo, colhendo frutas do pé, ordenhando sua vaquinha, e fazendo um café da manhã para o seu espouso…
está começando a soar estranho? bem-vinde, chegamos a mais uma camada da coisa toda: o conservadorismo.
parece meio coisa de gente paranoica, mas não veja as coisas da internet como uma trend boba e sem fundo ideológico algum. como já mencionei em textos passados, a onda conservadora que temos hoje vem como uma reação das intensas lutas sociais que tivemos ao longos desses anos. as mulheres conseguiram se livrar de muiiiiita parada ruim, porém, fomos parar em outra coisa ruim: o mercado de trabalho desigual.
se os homens são intensamente explorados pelo empresário, nós então, nem se fale. e foram surgindo falas bobas de “ai como eu queria ser esposa troféu”, “ai como eu queria poder só ficar em casa”, pipipipopopó. cuidado, minha amiga, com o que você fala, pois o universo ouve e te dá uma onda conservadora que faz uma intensa propaganda para trazer a mulher de volta ao lar.
e aí vemos a trend das tradwife. mas não só elas, muitas aesthetic trazem o elemento de ser de alguma forma dependente de um homem, de não ter senso crítico e de você perder seu tempo tentando ser algo que nunca vai conseguir ser. e aí temos a soma do male gaze e conservadorismo, que de uma certa forma são a mesma coisa, que querem que a mulher, que o feminino no caso, seja o elemento de submissão, o elemento que existe para o embelezamento da vida alheia. não da sua vida mulher, mas da de um homem.
então, quando a gente tenta procurar um estilo para si e no mundo de hoje nos deparamos com essas aesthetic, vemos um mundo cujo o estilo passa primordialmente pelo consumo, não pelo conhecimento de si, e também pelo encarceramento do feminino a uma ideia de submissão, fome e burrice, mesmo dentro dos estilos que se propõem serem mais “intelectuais”.
se estamos presas a um mundo masculino, o que no fundo poderia ser o feminino apenas para o público de nós, garoutas?
feminino no female gaze
eu já ouvi um papo que essa coisa de male gaze e female gaze não existe, mas no fundo eu só quero fazer uso desses termos para ajudar a pensar em quem está vendo o quê.
no fundo, boa parte do que molda o feminino é sempre em oposição ao masculino. uma oposição imposta, porque se eles se apoderam da raiva, eles nos obrigam a ser sensíveis. então, assim, são coisas que nos socializam, assim sendo, são pontos de vista.
e agora eu chego no ponto que me fez querer escrever esse texto todo! (rs)
se somos bombardeada com infinitas imagens de feminilidade, que na real são a forma como o masculino vê o feminino, então como ter a feminilidade sob o olhar feminino?
falar sobre delicadeza é sobre o feminino pelo feminino?
com isto, eu lembro do filme A Substância. eu sinto que a gente conversa pouco sobre as agonias de que é ser mulher, com e sem útero. o horror de habitar um corpo que muda todo mês, que não pode envelhecer, que sofre com inúmeras intervenções, mas não podemos sentir este horror. seguimos fingindo que está tudo bem.
o lance do filme, para tudo que já falaram dele, é ver uma mulher mostrando a agonia de habitar um corpo feminino. as dores, os horrores psicológicos e, não importa o quanto você tente ser padrão, eventualmente vai ser descartada. ROSTO NOVO, sempre vão dizer isso, ainda que quem fale essas coisas seja um rosto de homem velho.
enfim, o esforço de pensamento que eu quero é, se você mulher, pudesse colocar algo dentro de uma visão feminina, o que você faria e como mostraria?
primeiro ponto que eu penso é a visão sobre os corpos. a gente teve uma onda de “corpos reais” e toda a coisa de amor próprio, mas claro que tudo era o que estava em voga no mercado, não era algo real. então, eu de fato faria algo que mostrasse mulheres do jeito que elas podem ser, ou seja, todas as variedades de corpos. colocaria uma mulher que entende da sua sexualidade e do seu desejo, entendendo também o quão fluído ele é e como ele pode variar ao longo dos anos.
colocaria os dilemas que nos assolam no dia a dia. uma representação do que é equilibrar inúmeros pratinhos e deixando eles caírem, sendo o seu o primeiro que cai. a dificuldade de se fazer ouvida. a explosão de tanta coisa acumulada dentro de si. o peso de se sentir responsável por pessoas. a dificuldade de pedir ajuda. não conseguir ter tempo para si. não entender o que gosta…
enfim, no fundo acho que é até fácil parar e pensar em como nós mulheres retrataríamos o feminino. mas quer um desafio de verdade? como pensar nesse feminino levando em consideração o outro?
a gente não pode esquecer que, no final do dia, ainda somos seres que são desejantes e querem se sentir desejadas. meio zuado falar isso em voz alta, mas se você quer no mínimo transar, não tem como você não pensar em como o outro vai te olhar. e ainda restringindo ao caso heterossexual, não tem como não pensar como um homem vai te olhar e perceber.
e aí, minhas amigas, como fugir do male gaze? como fugir dos pensamentos do que um homem pensa de você? e para isto não tenho uma resposta.
ainda acho que o importante é você manter quem você é e tentar se apropriar, dentro do possível, do que é essa coisa de atração. apesar de eu ter preferência por shorts e calça, eu amo usar vestido coladinho, uma saia curta com uma regatinha colada. mas isto está dentro do meu conforto. eu amo estilo femme fatale, contudo, não faço muito uso dele porque já sai um pouco da minha zona de conforto.
enfim. acho que no fundo o feminino é muito plural e vai ter seus cortes do male gaze, porém, independente de qualquer coisa, o lance é entender quem você é apesar do gênero.
Depois de tudo isso, bora para as referências do texto e dicas de cartinhas que li esses tempos:
As mulheres e seus hobbies, texto da Ana Vitória Rocha;
let's talk about the rise of ‘-core’ and ‘girl’ aesthetics, Mina Le;
explaining the hyperfemininity aesthetic, Mina Le;
the myth of the "pilates body", Mina Le;
so, you're skinny. what else?, da Luisa;
Reflorestamento de si, da Raisa Monteiro Capela.
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Até a próxima.