a gente tem um trauma coletivo.
acho muito curioso como vivemos como se nada do que aconteceu nos últimos anos tenha existido. uma resposta normal ao trauma, a gente se choca, sente emoções fortes, mas assim que surge um pingo de normalidade, colocamos tudo para debaixo do tapete.
vamos tirar este elefante branco da sala.
passamos por uma pandemia brutal no pior contexto político possível. e não tem nada mais horrorizante do que saber que, a qualquer momento, sua realidade pode mudar. sua vida pode parar por anos, sem qualquer perspectiva de volta. você pode ficar doente a qualquer momento. sua saúde pode definhar do nada.
e, sabendo que a vida é um sopro e as Moiras podem cortar seu fio da vida quando bem entender, surgiu o delírio coletivo que vai tanto para o lado de viver tudo que há de se viver quanto tentar ser o mais saudável possível.
você fazia academia antes da pandemia? eu não, comecei tem um ano e oito meses, muito mais pela questão da idade com o somatório dos tipos de atividades que eu faço, o corpo não aguenta mais tanto impacto, mas também para envelhecer bem. eu brinco com meu namorado que eu quero ser uma IDOSA GOSTOSA. aquelas idosas com 75 anos super ativas e seguem vivendo suas vidas, aproveitando tudo que é de interessante.
assim como eu, senti que muita gente foi atrás de atividade física neste mundo pós-pandêmico. galera da academia, do crossfit, da corrida… estes são os grandes grupos que eu consigo imaginar.
e é muito bom ver muito mais pessoas ativas, tentando garantir a poupança muscular para velhice. estão levando a sério o treino, tão a sério que estão começando pipocar discursos que beiram ao fanatismo religioso.
o treino de fato não adianta muito se você não come bem. a comida do dia a dia mesmo. é importante consultar um profissional da nutrição para saber como montar seu prato, o que comer, quais substituições são possíveis, enfim, realmente pensar em uma alimentação balanceada para o dia a dia. nisto, a gente sabe também o que é comida ruim.
aquela pizza com queijos e embutidos, aquele hambúrguer suculento, um prato enorme de macarrão, o podrão da esquina, aquele potão de sorvete… para os do álcool, uma cerveja bem gelada, um bom drink, um vinho…
minha boca até saliva só de pensar.
a gente sabe que comer estas coisas, todo santo dia, vai acabar de vez com sua saúde. mas e de vez em quando?
já vejo os paranóicos com saúde dando um uníssono grito: NÃO!
eu sempre vou amar o fato do quanto as pessoas são muito 8 ou 80 e não tentam encontrar um equilíbrio de saúde com umas pitadas de droguinha alimentícia.
você malha e resolve comer um hambúrguer é basicamente um crime, não pode, não deve, vai perder seu treino.
calma!
é muito interessante como a gente internaliza os nossos choques emocionais. passar por uma situação que SAÚDE virou uma questão tão explícita que acabou colocando uma pressão por ter que ser muito saudável. uma obsessão pelo prato perfeito, pelo excesso de exercício, por se entupir de suplementos, uma competição do quão sadio você consegue ser. e nessa paranóia vem os discursos de tudo que não pode ser feito e o momento das refeições vira uma grande prisão, tendo como único dia de liberdade o “dia do lixinho".
viver bitolado assim não dá, então, você resolve comer um podrão para tentar atestar sua liberdade. contudo, com este podrão vem a culpa, porque um monte de gente fica buzinando no seu ouvido que você errou, que não tem que sair da dieta, que alimentação saudável é uma religião para ser seguida da forma mais devota possível, que não adianta nada malhar e comer esta bomba calórica, enfim, aquela coisa que todo mundo adora apontar o dedo na cara do outro e listar os erros, mas nunca faz um mea culpa das suas próprias escolhas.
não é fácil lidar com esta culpa, já escrevi que não importa o quão feminista você seja, enventualmente você sucumbe a pressão de ter um corpo magro. porém, a vida também acontece nos podrão da esquina, a vida tem este lado bagaceiro que é preciso viver. de que adianta esta busca desenfreada por saúde, sendo que você não acaba vivendo? você nega os docinho das festas dos filhos de amigos, dos casamentos, não come um monte de churrasco com gente que ama, acaba levando uma marmita e só bebe água, viaja e tem que ficar fazendo comida, poxa imagina ir para itália e não provar um gelato? uma pratada de macarrão, uma pizza, vinhos…
tem uma série que se chama Kaos e ela é perfeita! ela faz uso da mitologia grega para traçar uma grande crítica aos fanáticos religiosos. o lance é que os deuses criaram uma história de que, se você viver de um jeito específico, vai ter direito a reencarnar muito melhor na próxima vida. eles vendem esta ficção que te obriga a viver de um jeito muito específico. contudo, como a série mostra, é tudo mentira. o fato de usar os deuses gregos é ótimo, porque, querendo ou não, são os deuses mais humanos de todas as mitologias que ouvimos, incluindo a cristã.
sendo tudo isto uma mentira, uma das personagens acaba tendo como missão mostrar ao mundo que não adianta seguir a regra, no fundo você não terá outra chance. como as coisas mundanas são as melhores, o sexo, as grandes refeições, os momentos de bebedeira com os amigos, insira aqui o seu podrão favorito, não vai adiantar nada se privar de tudo isto. viva, curta, aproveite a vida, porque é só esta que você terá.
amplio esta ideia para este povo noiado com saúde a qualquer custo. você vive uma vida tão regrada que não aproveita o lado podrão da vida. e eu aposto que se alguém é noiado com isso ler este texto, vai pensar: “ah, mas eu me divirto muito, não preciso dessas coisas para ser feliz".
beleza, cada um faz suas escolhas, mas eu não quero ter que ficar me estressando com cada grama de comida que eu ingiro, não beber meu negocionho de vez em quando, não poder comer um docinho na TPM…
se você não depende da forma do seu corpo, da magreza, para ganhar o seu sustento, para que se estressar com tantas regras?
Xeque mate, meu negocinho favorito para bebiricar num dia quente!