uma secularização que não deu muito certo
porque ocidente adora roubar religiões alheias
um dos marcos mais importantes para história ocidental é a passagem de um Estado que era centrado na religião para um que pautado na racionalidade. não só o Estado, a vida como um todo passa a não ter explicações mística, mas sim toda uma elaboração lógica pautada em método e empirismo. um avanço social para um caminho no qual a religião, o mágico, deixa de orientar o mundo.
e a racionalidade é um elemento importante para o Ocidente, querendo ou não, a compreensão de mundo gira em torno de explicações lógicas advindas desde o áureos tempos do iluminismo. o mundo está desmagificado, desencantado, fazendo alusão ao conceito weberiano.
contudo, será mesmo que a gente ainda não precisa desse elemento meio místico em nossas vidas?
diga-me, nesses últimos anos, quantas vezes você viu alguém falando sobre meditação, ou sobre fazer yoga? ou insira aqui alguma prática de origem religiosa, mas estava travestida de uma roupagem secular, ou seja, sem o fator religioso embutido.
ter visto muito sobre isso me colocou uma pulga atrás da orelha sobre como o mundo ocidental se desfez de muitas amarras religiosas, porém, ainda precisa de algo que tenha um pé ali, apenas mudando o contexto.
meditação é uma delas, que hoje pode até ser chamada de “mindfulness”.
essa semana mesmo li uma reportagem na folha de são paulo, na qual o pesquisador falava sobre o quão furada é essa ideia do mindfulness. primeiro pelo esvaziamento por trás da prática.
meditação faz parte de um ritual religioso. muitas religiões do leste asiático tem ela como parte da sua jornada espiritual e como regra dos seus hábitos. tipo um ir na missa e rezar para os católicos. então, a prática tem um contexto e um propósito dentro da religião. entretanto, ninguém no ocidente quer virar budista, ou algo assim, porém, viu-se que essa coisa de ficar sentado, respirando profundamente tinhna uns efeitos interessantes que daria para vender.
temos um problema, uma sociedade cada vez mais estressada, ansiosa, sem tempo para nada e que pode começar a ter movimentos contra aquilo que está ocupando toda a vida dela, o trabalho. então, vamos pegar esse ato de sentar e respirar profundamente e vender como um remédio para tudo isso, afinal, uns 5 minutinhos de meditação por dia já ajuda. mas não só isso, vamos substituir a filosofia por trás e colocar uma diferente, uma que diga para você focar no presente, cheio de gratidão e também que, caso algum pensamento negativo surga, para deixar ele ir embora, não deixar ele ficar ali.
pronto, um produto perfeito que ajuda a pessoa a sentir algo espiritual e que ainda a ajude a ficar totalmente delulu, esquecendo completamente a realidade na qual é inserida, assim ela não irá se revoltar contra o sistema que está causando seus verdadeiros problemas.
como esse tema não é algo novo no meu desejo de escrita, enquanto preparava o roteirozinho deste texto, lembrei que uns anos atrás tinha escrito algo semelhante. porém, ao invés do foco em meditação, era sobre o quanto estava vendo uma galera entrar no role de “jornada espiritual”, “retiro espiritual”, ainda mais que era plena pandemia e muita gente estava com a pira de mudar de vida.
a coisa toda dessas jorndas é que ela envolve fazer uma viagem super instagramável para algum lugar super precário da ásia ou da áfrica, postar frases iluminadas, depois fazer um textão de aprendizado e como você se sente um ser humano melhor, mais iluminado depois dessa experiência. isso traduz para: “menines, todes deveriam fazer essa jornada explorando cultura e religião alheia para proveito próprio, sempre postando no instagram, mas sem deixar de ser narcisista e individualista, porque essa coisa toda é só pela persona e não para algo maior".
as pessoas querem a iluminação religiosa, mas sem lidar com os deveres que isso tem. querem se sentir bem espiritualmente, sem lidar com as obrigações. há uma necessidade de espiritualidade, porém, comprar isso com uma roupagem de produto é bem melhor.
além da meditação, outra coisa que vejo ter essa pegada meio religiosa são livros sobre criatividade.
parte importante da religião é a liturgia, ou seja, os ritos que você precisa fazer para acessar esse divino. e ritos não são nada mais do que práticas, realizadas de uma forma metódica, para algum fim específico. a reza, as orgias, os sacrifícios de animais e humanos, a meditação, a escrita, tudo isso pode e faz parte de rituais religiosos.
e uma parada que percebo em boa parte do livros sobre criatividade é uma estrutura quase ritualística para você fazer coisas com a finalidade de ter mais criatividade, ou aprender a ser criativo. pense numa lista de práticas, como escrever as páginas matinais (o famoso e velho diário, mas com uma roupagem metódica e mística), o tempo de ócio (impossível nos dias de hoje), ler sempre, ver filmes, ver coisas que fujam do seu senso comum e, o que mais me pega, ter contato com a natureza.
essa semana eu me deparei com uns stories de uma jornalista que eu sigo, ela estava falando de um livro sobre criatividade que está lendo e odiando. um trecho que ela separou envolvia o contato com a natureza como parte importante da coisa. aquela coisa bem tilelê, nível branco que toma ayahuasca e se sente muito espiritualizado, sentir a terra, energia das árvores e aquele blá-blá-blá todo que falam sempre que você precisa de um verdinho (não necessariamente o de fumar). uma seguidora dela deu uma resposta muito interessante, que era basicamente o quanto a lógica ocidental olha a natureza como um recurso, sempre explorando de alguma forma, nesse caso, em prol da criativadade.
não vou me fazer de diferentona e falar que não uso a natureza para o meu bem-estar. eu amo mar, amo nadar no mar, pisar na areia, sentir o cheiro da maresia, mas eu nunca vou olhar como um recurso do qual eu estou pegando para mim, aquilo é um momento de paz, de descanso. posso olhar a viagem como uma forma de alimentar minha criatividade, mas não a natureza.
contudo, é claro que esse mundo que tem suas necessidades vai buscar sempre recursos novos para ser explorado. já está old o catolicismo, já foi explorado demais, sem contar que, religião em pleno século XXI? por favor! mas, não vamos negar a necessidade de algo espiritualizado na vida, afinal ela dá um tom meio mágico que às vezes falta para gente conseguir aguentar a rotina. coloquemos os ritos, coloquemos uma filosofia de vida, coloquemos algo que possa ser um divino, no caso, o divino no Ocidente é o Eu, vamos juntar essas coisas todas e vamos vender em um pacotinho a ser consumido, uma religião 2.0, sem um deus, mas com diversas possibilidades de crenças e você escolhe quais vai acreditar.
as fontes para essas novas ideias? pegue qualquer religião não-branca, veja o que elas falam, olhe o que elas fazem, montamos uma embalagem bonita e vendemos. colocamos a ideia de que não é preciso ser religioso para ser espiritualizado, falemos que essas coisas estão a serviço para o desejo da pessoa e é isso. a gente supre a necessidade de um divino, ao mesmo tempo que anestesia quem entra na onda.
e assim, esse texto talvez já esteja um pouco longo demais, porém, para além da problematização do roubo ocidental de religiões não-brancas para criar uma religião secularizada, porque né, o ocidente vive disso, de roubar saberes alheios para fingir que inventou a roda. gostaria de tentar elaborar outro ponto: o quanto isso também é um método delulu para gente não atacar os problemas reais.
principalmente quando a gente coloca a meditação na jogada, o foco é o alívio do estresses gerado pela rotina, sendo ela majoritariamente ocupada por uma coisinha chamada trabalho.
tudo que vemos hoje como algo normal no mundo trabalho, no fundo foi conquistado com muita luta trabalhista. hoje, 8 hrs de trabalho por dia é muita coisa, mas pense que antes era muito mais tempo e em situações extremamente precárias de chão de fábrica. férias? décimo terceiro? APOSENTADORIA? você nem sobreviveria ao trabalho para sequer ter a chance de ter aposentadoria.
o mundo muda, o mundo se transforma e novas necessidades vão surgindo, principalmente o desejo de trabalhar menos, afinal, olha o nível de estresse que estamos vivendo. a elite tem duas opções agora, dar benefícios ou inventar formas de deixar as pessoas meio delulu.
falei delulu muitas vezes e nem expliquei, mas é basicamente ter a mente delirante e fora da realidade. o ato de simplesmente ignorar que o mundo é uma merda. enfim.
qual opção vai gerar menos problema, ou melhor ainda, qual opção vai evitar de criar problemas maiores? uma parada que muito empresário percebeu é que a flexibilidade de trabalho fazia com que os funcionários vissem que é possível viver além do ofício, que no fundo isso é a parte mais irrelevante da vida do ser humano. trabalho é puramente uma troca monetária, na qual você oferece seu tempo em troca de dinheiro. isso começa a dar um tom de consciência de classe…
então, o que a gente pode fazer? criar “hábitos saudáveis e espiritualizados” nos quais vão deixar as pessoas delulu e não entrar nessa pira de luta de classes. pense positivo, romantize sua vida, medite, faça yoga, entoe mantras, joga para o universo, olhe os astros, veja a bolsa de valores.
economia é astrologia para homens heteros cis
no fim, cria-se todo um aparato para deixar a pessoa menos estressada, ou tentar colocar a culpa do estresse no colo dela, fazendo-a ignorar o real problema. pronto, com esse pacotinho religião 2.0 você, o empresário e a elite, conseguem resolver um problema de forma eficiente e duradoura.
no fim, toda essa crise espiritual ocidental acaba tendo muitas camadas. dentre elas a real necessidade das pessoas em terem contato com algo espiritualizado, uma conexão com algum divino, afinal a sociedade é pautada nisso desde o seu primórdio, e também a venda de espiritualização secular vem para nos deixar descolado da realidade em que vivemos, com todo esse papo que vemos hoje, ignorando os sentimos negativos, que, apesar de serem chatos, podem ser combustível para coisas muito potentes, como a tão sonhada luta de classes.
e é isso, terminei o texto me sentido uma velhinha marxista que ainda bota fé numa verdadeira luta trabalhista para acabar com esse sistema. é isso.
Pílula de pitacos
a posse do Ailton Krenak na ABL e o fato de algumas pessoas não terem entendido o seu discurso: achei interessante isso, a percepção do simbolismo raso e ninguém entenendo que no fundo, o Ailton Krenak não é escritor, mas está ali ocupando essa cadeira.
elon musk vs xandão: o twitter não vai cair, para a tristeza da grande maioria dos seus usuários, mas é louco ver a treta que esse bilionário tá comprando com o poder judiciário de um país, realmente rico tem uma autoestima maluca.
ditadura: mesmo passado essa semana dos 60 anos do golpe militar, a cada ano que passa eu sinto que a gente não sabe 10% do que aconteceu. ouvir que o comando vermelho começou ali, o papel das mulheres no combate à ditadura, na narrativa intensificada do mito da democracia racial. o quanto a gente não sabe da nossa própria história?
links links links
meu texto do medium que eu referenciei.
a news dessa semana da Taize sobre sugar babies e o conflito de ser feminista.
a news da Marie sobre o filme coringa.