coisas que pensei e senti com notícias futebolísticas e o caso Marielle.
eu sinto que sou viciada em prólogo, mas não algo para dar um panorama do texto, porém, uma mania meio chata de achar que preciso justificar minha escrita de uma certa forma. eu sei que o texto é meu, escrevo ele da forma que eu desejar e sobre os temas que eu desejar, contudo, eu de fato queria trazer alguma firula pessoal sem grande importância, mas viver tendo um pouco de noção do que acontece no país e no mundo às vezes é pesado.
algumas notícias e as repercussões acabaram me chamando atenção. elas parecem meio desconexas, talvez duas tenham uma conexão que pode ser mais óbvia para sua visão, porém tudo se conecta dentro do que quero falar. meu deus, de novo parece eu me justificando.
enfim.
as notícias, nas quais não vou detalhar e nem linkar, porque, assim como eu, você tem acesso à internet e pode dar um google, é sobre a prisão dos mandantes do assassinato da Marielle e Anderson, a soltura do daniel alves com o pagamento de fiança de 1 milhão de euros e o choro do Vini Jr..
para mim, todas essas notícias se conectam na ideia de se traduzir uma dor para quem nunca irá sentir ela e o quão exaustivo é esse trabalho, porque, no final das contas, quem está ouvindo não se importa, afinal, não é dor dele. o que simboliza a soltura do jogador? o que simboliza o choro do Vini Jr. com relação ao jogo contra a espanha? o que diz todo o caso Marielle?
percebam que usei “dele" ali em cima, mas não é com o intuito de colocar um gênero neutro segundo normas do padrão culto da língua portuguesa, porém, aqui eu quero deixar localizado quem é meu Outro de referência desse texto. o famoso homem branco.
adoro trazer umas coisas de antropologia para vida, então aqui estão alguns conceitos base.
a antropologia surge em um contexto no qual o contato da europa com outras nações de outros continentes estava cada vez mais intenso, a exploração desses povos estava pioriando e precisava encontrar alguma justificativa para definir a superioridade do ser europeu.
então, para entender como montar essa teoria, era preciso saber como funcionavam esses povos. assim, surgem duas coisas importantes: a alteridade e a ideia do papel de tradução da antropologia.
a alteridade é definida como uma diferença extremada entre o povo e quem o está estudando. naquele época se limitava ao europeu e as populações que ele dominava. hoje o sentido desse conceito já tem outros contornos, se antes soava estranho uma pessoa estudar sua própria comunidade, agora é algo normal e até necessário. a fronteira do eu e o outro já está menos distante, porém ainda existe. aqui eu me coloco como a categoria do EU e coloco o homem branco como o meu Outro extremado.
e o que faz aceitável, hoje, a quebra dessa alteridade para as pessoas estudarem suas próprias comunidades é que a tradução de cultura por quem não pertence a ela pode ser falha.
o trabalho do tradutor, em suma, é pegar o conceito de um idioma específico e colocar em outro e tentar reduzir a perda de significados, é impossível traduzir tudo literalmente. o que o antropólogo fazia era algo semelhante, ele tentava explicar o que acontecia com certos povos dentro dos conceitos sociais do europeu. a questão é que, por mais que até hoje o Outro fale em ciência neutra, não existe estudo sem viés, e não, não existia tradução sem colocações tendenciosas. desta forma, hoje entendemos que para se fazer um estudo mais fiel ao que são os costumes de uma comunidade, é importante que seja feito por alguém que é dentro e não de fora.
então, estas são as ideias que quero que você tenha em mente quando digo alteridade, Outro e tradução.
vendo um pouco a repercursão das notícias que citei, todas as falas traziam algo que remetia o simbolismo de cada caso, a mensagem por trás de cada caso, contudo, não sinto que a mensagem de fato está sendo passada da melhor forma.
começo com o caso do jogador daniel alves, acusado de estupro e solto para responder em liberdade sob a fiança de 1 milhão de euros.
no dia da sua soltura, vi a comoção de quem é diretamente atingida por essa cena e para nós a mensagem era bem clara, se você for homem e tiver dinheiro, não existe crime para você. é uma tristeza que eu não consigo nem mais acessar de tão cansada que eu estou de pensar o quão terrível é ser mulher em um mundo de homens que odeiam mulheres. e o que me dói também é ver o quão baixa foi a menifestação dos homens ao meu redor.
entendo que parte da ausência de comoção pode ser do fato de que é tanta tragédia acontecendo que a gente perde a sensibilidade e a apatia é a única coisa que nos ajuda a sobreviver. mas, para ser honesta, não acho que de fato seja o caso, só acho que o Outro não se importa mesmo. e afirmo isso pois é muito paupável o quanto homens não procuram entender o que é esse mundo para nós, mulheres. não procuram enquanto figem solidariedade às nossas dores, que entendem que é uma barra ser mulher, mas sem fazer nada no que cabe ao poder deles para tentar ajudar.
e o que eles esperam é que nós façamos o trabalho de tradução e dizer o que eles devem fazer. a gente precisa pedir que eles mudem um sistema que é construído por e para eles. a gente pede, a questão é o quanto somos realmente ouvidas? bem pouco.
ontem me deparei com uma imagem muita boa no twitter (sim, me recuso a falar X) que representa o quanto tememos a figura do homem: se eu estiver perdida em uma floresta, eu prefiro ser ataca por animal do que me deparar com um homem. e para complementar, se eu for atacada por um animal, ao menos vão acreditar na minha palavra.
o que essa ideia te fez sentir? foi bom o suficiente para traduzir a sensação de ser mulher?
agora que falei da parte HOMEM, vamos para a parte branco.
quero começar com a parte que para mim é um pouco mais complexa de trazer uma linha reta de ideias, que é o caso Marielle. esse final de semana, depois de 6 anos de seu asssinato, finalmente a justiça chegou aos mandantes. o que foi um pouco surpresa para muita gente, é que eram políticos do rio de janeiro ligados com milícia e grilagem de terra, pautas que não era uma prioridade no que Marielle trazia em seu discurso.
dentro do que foi dito era sobre o quão forte Marielle poderia ser para chamar essa atenção, houve muito menosprezo da força política que ela tinha. como foi muito bem colocado pelas jornalistas Flávia Oliveira e Isabela Reis em seu podcast Angu de Grilo, Marielle tinha como pauta a segurança pública que, de uma certa forma, intersecciona com os assuntos dos mandantes do crime, a ideia do assassinato era eliminá-la antes que ela fosse mais forte ainda e pudesse ser um perigo intransponível por eles.
ela era e é gigante, por mais que tentem diminuir a força política dela por não ser tão amplamente conhecida nacionalmente.
outro ponto sobre o caso dela e aqui somo ao caso do Vini Jr..
Vini Jr., como vocês devem acompanhar minimanente, tem sofrido fortes ataques racistas por parte dos espanhóis, eu quero generalizar para europeu, mas né, não sei o suficiente para poder fazer isso. na última coletiva de imprensa que ele deu, ao ser comentado sobre o jogo que ia ocorrer contra a espanha, ele deixou sua emoção fluir e chorou dizendo o quão difícil estava sendo para ele e que já tinha pensado em desistir da carreira.
esse choro gerou comoção, muitos desejando força a ele e uma fala infeliz do atual técnico dizendo para ele não se preocupar pois se os culpados não tiverem a justiça dos “homens", terá a divina…
e agora vamos unir a questão com o caso Marielle pela fala infeliz de muitos homens brancos… o fato de os mandantes fazerem parte da política e da polícia traz uma luz para o quanto o crime organizado está em altos escalões da vida social, assim, a morte dela teria “ajudado" a apontar os verdadeiros culpados. basicamente, como se a morte dela não tivesse sido em vão e valeu para algo.
e, assim como os homens se solidarizaram pouco com a dor das mulheres, aqui há pouca solidariedade às pessoas racializadas. a solidariedade só aparece um pouco mediante o sofrimento, assim, Marielle só é válida porque morreu, Vini Jr. só tem seu valor sofrendo racismo e quase desistindo de sua carreira. o branco olha para essa situação quando ela consegue, de alguma forma, ser espetacularizada para o seu entretenimento e aquele afago na consciência, como um simples falar de “é foda, força aí” fosse o suficiente.
e, novamente, eles clamam para que expliquemos essa dor, o que está acontecendo e o que eles podem fazer para ajudar.
há muitos anos li um livro que se chama “por que não converso mais com pessoas brancas sobre raça” da Reni Eddo-Lodge e até fiz uma postagem nas redes sociais sobre isso. uma parada que a autora disse e acho que li algo semelhante em outros lugares, é que o opressor fará tudo em seu poder para distrair o oprimido de buscar sua liberdade.
assim, quando falo “eles clamam para que nós expliquemos e falemos o que eles precisam fazer" acaba sendo puramente um método, inconsciente, de manuntenção de privilégio e uma falsa sensação de que estão sendo solidarários.
homens são capazes de fazer um tedtalks sobre seu jogador de futebol favorito, sobre suas cartinhas de magic e sobre qualquer outro hobby que tenha, mas quando se fala em aprender sobre machismo, sobre racismo e tudo mais, aparentemente ficam tão burrinhos e precisam que alguém desenhe. até porque, se outra pessoa explica, fica muito mais fácil de esquecer e se fazer de sonso dizendo que não entende do assunto.
ou, o pouco que entendem, jogam a cartada do “lugar de fala” e optam por ficarem quietos, afinal, não é um assunto deles. lugar de fala é um conceito que já perdeu seu sentido, porque se antes era para entender que precisamos ouvir minorias, virou um privilegiado se abstendo em situações que ele deveria se posicionar.
e como saber quando se posicionar? pois é, você que me diga quando.
e daí vem minha resposta para pergunta do título, qual o sentido de traduzir as dores para o Outro entender e ser solidário sendo que ele nunca ajuda? sendo que raramente sinto que posso contar com o Outro, sendo que toda vez que eu tento fazer um esforço de explicar eu sinto que roubam meu conhecimento e me dão como troca traumas emocionais.
é cansativo e esse cansaço sei que também é arma do Outro para dificultar nossas vidas. quando Vini Jr. diz que já pensou muitas vezes em desistir o máximo que ele tem é um “tenha forças", é meio desesperador. força ele tem, mas o Outro não entende que o que queremos é paz. paz para viver nossas vidas, para vivermos nosso sonhos e ficarmos em paz de ter filhos, sentindo que eles não vão passar por violência, seja ela de gênero, de raça, sexualidade e qualquer outro tipo.
procurar paz, tranquilidade e descanso tem sido meu principal motivador de decisões. indo de escolhas profissionais até de simplesmente não me dar ao trabalho de explicar coisas para quem não quer ouvir, mesmo que se mostre muito disposto, porque disposição para ouvir e não aprender por si só para mim não é suficiente.
Refs:
Por que não converso mais com pessoas brancas sobre raça, Reni Eddo-Lodge (Letramento, 2019)
O pacto da branquitude, Cida Bento (Companhia das Letras, 2022)
Peles Negras, Máscaras Brancas, Frantz Fanon (Ubu Editora, 2020)
Viver uma vida feminista, Sara Ahmed (Ubu Editora, 2022)
Explosão Feminista, Heloisa Teixeira (ex- Buarque de Hollanda) (Companhia das Letras, 2018)
Angu de Grilo, ep. 228
Gostosas também choram, ep. o mundo é dos homens