estas duas semanas de junho me afetaram, de tal modo que eu simplesmente não consegui escrever estes tempos. até minhas entradas no diários ficaram mal feitas, mal escritas e simplesmente fingi que nada aconteceu comigo nestes dias. mas muita coisa aconteceu.
o mês começou com uma ida rara até são paulo, essa cidade que amo-odeio. parece que sempre vou para lá, acontece algum caos que me toma e eu fico meio paralisada. aconteceu um caos, estou até agora paralisada, mas enfim, a vida tem que seguir de alguma forma.
o motivo da minha ida foi ver a peça de um dos meus livros favoritos, “A casa dos budas ditosos" do João Ubaldo Ribeiro. acho que quem gosta de livros, sempre tem um que pega para ler em diversas fases da vida e, em cada momento, você tira alguma reflexão diferente. os budas ditosos é este livro para mim. o texto é uma grande memória sexual de uma baiana que, ao descobrir um aneurisma, percebeu que sua história deveria ser contada.
a experiência foi maravilhosa, não só por ver a peça de um livro que amo, com uma atriz foda, Fernanda Torres, mas também pela companhia do meu namorado e também porque eu estava morrendo de curiosidade para saber o que ele ia achar, ele optou por não ver nada sobre e ser surpreendido.
fiquei imensamente feliz por ele ter gostado e também pelo momento de reflexão que a gente sempre tem quando vemos algo. é bonito ver como cada um recepciona uma obra, o que cada um acaba levando daquilo.
como disse, o texto é sobre as memórias sexuais de uma mulher, que deixaria samantha jones no chinelo. ela fez de tudo, sem pudor algum e sem restrição, deu e comeu todo mundo que aceitava comer ela ou ser comide.
enquanto meu namorado passou pela reflexão mais introspectiva, da qual eu passei na primeira vez que li o livro, eu já parti para algo mais externo, pensando sobre como as pessoas que não tem noção do conteúdo seriam impactadas.
o texto não trata só de grandes orgias, da redução do homem ao mero objeto sexual da protagonista, mas também como uma menina de 12 anos estabeleceu uma relação com quem a abusou sexualmente.
aos 12 anos ela foi abusada pelo tio, por mais que ela já fosse uma criança altamente sexual, não foi uma experiência que ela queria ter. sei que talvez seja difícil para você ler isso, mas a gente passa desde cedo sentindo estas coisas diferentes e interessantes, algumas crianças são reprimidas, outras exploram mais, mesmo que escondidas e mesmo que em companhia de outros colegas curiosos. enfim, mesmo com todo o nojo da situação, ela tirou proveito, fez o tio pagar um intercâmbio nos EUA, tendo como troca o famoso c*. ela fez chantagem emocional com ele até o fim da vida dele, algo que ela diz sentir ser culpada, mas fala isso sem remorso algum.
qual foi seu sentimento lendo isso?
ao longo do texto, ela também falou com muito carinho de uma amiga, Norma Lúcia, que era uma musa inspiradora para ela. se a protagonista já exercia uma liberdade sexual irrestrita, Norma Lúcia era a própria deusa do sexo na terra e ninguém chegaria a altura dela. todos os homens e mulheres que tiveram contato com Norma Lúcia seriam gratos por finalmente terem aprendido a transar.
e no fundo, o que eu fiquei pensando é o que Norma Lúcia acharia desta geração D de Damares Alves. nunca tivemos uma liberdade sexual tão grande e nunca tivemos uma geração que transa tão pouco.
aqui, não vou colocar o capitalismo, sozinho, como vilão da coisa toda. sim, ele é culpado, afinal, o trabalho ocupa quase 100% das nossas vidas, estamos ansiosos, depressivos com o futuro, não temos dinheiro para nada, o mundo está uma ruína, pressão para todo lado, então né, quem tem ânimo para transar no meio de tudo isso. contudo, quero colocar um tempero nisto, que é o avanço da extrema-direita.
dentro do livro “como funciona o fascismo”, do historiador Jason Stanley, a pauta moral e a ideia da sagrada família é um dos pilares desta ideologia política, que infelizmente, desde 2016, voltou a ser moda. então, tudo que evolve sexo é colocado como tabu.
e assim, se uma senhora ou um senhor de 85 fala que “meu deus essa geração é só putaria, que absurdo sexo em tudo”, eu deixo passar, por mais que, no fundo, as mídias sempre retrataram o sexo das mais diversas formas, mas enfim, o que me incomoda é ver pessoas novas, com menos de 30 anos tendo um posicionamento de um senhor ou uma senhora de 85 anos.
o que é uma ironia, levando em consideração que nunca na história deste mundo nos deparamos com tanta imagens de corpos tão perfeitamente esculpidos.
mas é o que diz o texto “todo mundo é bonito, mas ninguém tem tesão", na qual a autora fala como hoje os corpos são centrais na mídia, porém, com um foco que não é o sexo. por mais que você tenha um físico perfeitamente definido, não é para atrair pessoas para um sexo gostoso, mas sim é uma ideia narcisista de construir uma forteleza impenetrável. o seu corpo é a sua fortaleza e ninguém pode te atingir, nem te foder, no mau e no bom sentido.
ela também discute como os romances são retratados sem a presença do tesão e do sexo. no caso ela traz como exemplo os filmes de heróis, mas não só ali, de forma geral, aquela tensão sexual que a gente via e sentia antes, não está mais presente nos filmes. na primeira camada de explicação, a gente pode colocar a culpa da necessidade de que os filmes precisam atingir um maior público para conseguir mais bilheteria, então fazer um filme 18+ não seria financeiramente viável. mas óbvio que a coisa não termina aí.
assim como diria a terceira lei de newton, toda ação possui uma reação (igual e oposta). no caso, toda a liberdade sexual que conquistamos com uma árdua luta social está tendo uma das maiores reações conservadoras desde os anos 1970 e 1980. e o que me assusta é que não parece ser um movimento com uns gato pingado que vai morrer de infarto ou de avc daqui uns anos, é uma população jovem que está sendo consumida por conteúdos conservadores que são alavancados pelos algoritmos das redes sociais.
não só a gente vê pouco tesão e pouco sexo nos filmes, mas o pouco que aparece é completamente rechaçado e tratado como desnecessário. um dos motivos que me levaram a ver Saltburn era o burburinho em cima das cenas de sexo “nojentas" e que não tinham sentido algum. após assistir ao filme eu fiquei em completo estado de “vocês fizeram barulho para isso?”. o que no fundo me faz me perguntar e, retomando o título, Norminha também iria se perguntar, qual o contato que hoje o jovem tem com o sexo?
eu sou da época em que Ninfomaníaca (Lars Von Trier, 2013) foi lançado. o filme que chocou por ter 4 horas de duração, e que acabou sendo divido em duas partes, com cenas de sexo explícitas e contando ainda com o momento de “pena” com relação a um pedófilo. ESTE filme me chocou, jamais o veria novamente e acho que ele deve ser esquecido, mas nunca falarei que sexo não é necessário em filmes.
contudo, o que vejo hoje é ou a completa falta de cenas sexuais ou, se elas estão presentes, são excessivamente romantizadas. esta visão completamente pudica com relação ao sexo, de que ele precisa ser muito romântico, cheio de floreios poéticos, mas, no fundo, sem tesão algum.
também fico me questionando sobre o que Norminha iria dizer sobre as tradwifes, essa trend no tiktok de mulheres performando o papel tradicional de esposa-mãe-cozinheira-empregadadoméstica-trabalhadorasexual-insiraaquiqualqueroutrapossibilidadedeexploração. bom, acho que ela diria que esse marido tem um chifre do tamanho da bahia, mas fora isso, acho que ela teria pena de ver tanta mulher fantasiando com esse tipo de vida.
eu não queria ter que trabalhar, mas se for para escolher um tipo de exploração, eu prefiro mil vezes isto e ganhar dinheiro do que ser encarcerada em casa para cuidar de um homem e da prole que ele vai me obrigar a ter.
de novo, o fascismo tem como pilar a ideia de moralidade e da sagrada família, então, me gera um pânico gigantesco ver tanto jovem que compra esta narrativa, como se isso for dar algum ar de superioridade para ele. até porque, no final das contas, há uma infinidade de intelectuais que tratam o sexo como algo animalesco, como algo que nos tira do racional, como algo que serve meramente com um fim reprodutivo, assim como diz um livro mitológico muito famoso no ocidente.
entretanto, surpresa, se você suprime seu desejo ele pode voltar mil vezes pior! e outra coisa, toda essa galerinha que se diz tão contra o sexo, tão contra que parece que nunca fez na vida, no fundo tem uma arma na manga: poder. os mesmos homens que se dizem tão castos com relação ao sexo, estupram, porque no fundo, a pira é a dominação violenta, é o sentir que você pode controlar alguém, até mesmo quando você não estiver mais vivo, porque a vítima vai viver com este trauma até ela morrer.
pl1904
e enfim chegamos no ponto que eu não consigo deixar de pensar desde a semana passada. de novo, não queria ser mais um texto que só fala da tragédia atual, mas eu queria falar um pouco deste projeto e minha opinião sobre coisas que aconteceram ao longo desses dias.
este projeto é encabeçado por 3 deputados do PL que desejam alterar o texto de alguns artigos do código penal DE MIL NOVECENTOS E QUARENTA, que permite aborto em caso de estupro, perigo para a gestante, a não punição do médico que realizar o procedimento dentro dos parâmetros legais, somado com uma decisão do STF que permite o ato em caso de anencefalia, para que os casos legais se restrinjam ao limite de 22 semanas, porque não existe este limite na lei, e caso seja feito para além deste prazo, o médico e a pessoa que gesta serão punidos, com o enquadramento de homicídio simples. a justificativa dos deputados é simples: como não existe essa definição do tempo limite, uma mulher pode chegar com 9 meses e resolver abortar (como se o aborto fosse legalizado).
parte dos pontos, que é o que foi o foco de toda manifestação desses últimas dias, é o quanto isto afeta crianças que são estupradas e possuem uma infinidade de dificuldade para conseguir abortar dentro deste prazo ilusório. primeiro é a demora do tempo para descobrir a gestação, depois existe todo um entrave burocrático e a dificuldade de encontrar hospitais que estão aptos para realizar o aborto legal.
em uma das entrevistas que estes deputados deram, um deles disse que esta criança que passou por uma violência será acolhida pela igreja, que ela vai ter uma rede de apoio para ajudar ela. e, cara, para mim isto me dá um ódio porque é querer puxar gente para igreja fazendo uso de uma violência e fragilidade gravíssimas, mas também, porque a gente sabe qual o tratamento de crente com relação às mulheres. não é de acolhimento, é de mais violência.
mas eu não quero trazer esse ódio em cima destes homens “de família”, porque é ponto pacífico que eles sãos um grandes canalhas. meu ódio mesmo, quando acontece algo assim, é sempre com homens de esquerdas que ficam quietinhos fingindo que não é com eles.
e é óbvio, porque antes de serem pessoas de esquerdas, são homens, sendo homens o que eles nos fazem é nos violentar também.
eu passei por um abuso psicológico que me assombra até hoje, foi um homem de direita? não, mega esquerda progressista pró-mulheres. passei por diversos assédios e violência sexual, foram homens de direita? não, todos de esquerda.
mulheres são violentadas por homens desde criança, independente da corrente política deste homem. e é por isso que eles ficam quietinhos com projetos como este, todo o ponto que a gente discute aqui é sobre poder e sobre quem controla quem. dizer que eu não posso abortar, obrigar-me a parir uma criança que eu não quero de um cara que eu não escolhi, ou no momento que eu não escolhi, é mostrar quem tem o controle. no fundo, homens de esquerda, assim como seus colegas de direita, amam controle e não querem ver nós termos o poder de escolher o que fazermos com nossos corpos.
até porque, se o aborto for totalmente legazidado, a gente vai frustar muito homem que sonha em ser pai, mas que não quer assumir as reais responsabilidades da paternidade. que sonha em ser pai, mas na primeira chance, somem porque viram que cuidar de criança é difícil e ainda reclamam de pagar 200 reais de pensão.
homens não querem perder o controle sobre os nossos corpos, seja por exercermos uma liberdade sexual nunca antes possível, seja porque, sem nós, eles nunca teriam filhos, assim, eles nos forçam a parir, porque ELES querem.
se você for homem, de esquerda e estiver lendo isso aqui e não se deu a trabalho de fazer um mínimo posicionamento sobre este tema, se não acolheu o desespero de alguma amiga ou parceira, eu espero que um dia você tenha filhos, que todos te odeiem e te abandonem.
e também que fascista deveria voltar a ser palavrão, porque esta merda tá normalizando demais e tô cansanda de ver tanto retrocesso.
links de refs
O texto “todo mundo é bonito, mas ninguém tem tesão”.
“THE PURITANICAL EYE: HYPER-MEDIATION, SEX ON FILM, AND THE DISAVOWAL OF DESIRE”
link da PL1904.
link do livro “Como funciona o Fascismo".
News para deixar bem claro que a gente odeia crente.
E ouçam o episódio 240 do Angu de Grilo, não vou colocar link, pois está dando algum bug no spotify quando tento pegar o link.
Um texto provocativo.
Precisamos de mais provocações.