o gancho que me fez pensar em todo este texto vem de um tweet:
musa para mim, até então, era uma figura estática na vida de um homem. uma mulher muito bela, interessante, mas nunca de um jeito genial, que inspirava a paixão em um homem. uma paixão tão avassaladora que o tornava um gênio no que fazia, na arte, na ciência, em qualquer criação de algo.
eu quis ser musa, não vão ser hipócrita aqui. sei que este desejo parte muito de um lugar de carência e de ingenuidade, mas eu queria sentir que gerei a inspiração para um homem criar algo. parece bobo, parece besta, porém, quando se é mulher, o homem é a única possibilidade de se realizar um sonho. você pode não ser reconhecida pelas suas grandes ideias, mas se você der elas para um homem, pronto, todos vão amar e, através dele, você acaba tendo a sua visão realizada.
é um bom plano? não, não somente pelo fato de que não devemos usar ninguém para realizarmos nossas vontades, mas também pela ingenuidade de achar que o homem não vai roubar tudo que é seu, levar todo crédito sobre isso e te abandonar.
alguma musa foi creditada por inspirar um homem? no fundo são todas mulheres genéricas, que possivelmente nem existiram.
mas calma, eu disse que homens roubam as ideias. então você, homem que se relaciona com uma mulher, se pega reproduzindo o que sua parceira fala, pensa e muitas outras coisas, vem aqui ler algo te colocando como um vilão, porque você homem, se ofende com muita facilidade.
e assim, claro que dentro de um relacionamento a gente copia coisas do outro. eu, por exemplo, peguei muito o jeito de falar do meu namorado, as gírias, o R paulistano (sou do interiorrrrrr), dentre outras coisas. mas existe um limite.
eu sou antropóloga e leio muitos livros da minha área, principalmente com temas de gênero, raça e classe. tenho posicionamentos bem definidos e falo com muita firmeza das coisas nas quais acredito. falo muito abertamente quando sou perguntada, contudo, eu evito de ser muito clara quando a conversa tem um homem no meio.
o motivo? ter visto, mais de uma vez, um cara fazendo uso da minha fala como se fosse dele.
não nego, minha vontade era fazer uma lavação de roupa suja aqui, mas acho desnecessário no momento. só quero que saibam que, até então, todos os meu relacionamentos acabavam com uma sensação horrível de ter sido roubada, o que me deixou ainda mais fechada com a ideia de falar o que eu penso para um homem.
então assim, beleza, a gente sempre pega um pouco dos maneirismos do outro na relação. contudo, muitos homens vão além, não só pegando isto, mas também todas as ideias que suas parceiras ou amigas lhes dizem.
e vendo o tweet e tendo já passado por estas experiências, fiquei me questionando: no fim, o quanto de conhecimento há no mundo que a sua origem partiu de uma mulher?
existe uma arma criada dentro da ciência tradicional que é a neturalidade. e eu chamo de tradicional porque é a construção do conhecimento criado pelos homens brancos colonizadores, mas que, infelizmente, é o padrão que usamos quando aprendemos sobre ciência.
enfim, neutralidade. então, quando você, pessoa que não é um homem branco, pensa em criar algo e traz a sua vivência ali, mesmo que muito implícita, seu conhecimento não é válido, ou é dito de “nicho". o saber válido é “neutro".
claramente, tudo isto é uma mentira. em seu brilhante artigo chamado “Saberes localizados", Donna Haraway mostra como a ciência não é nada neutra e é extremamente enviesada, mas é dita como sem viés, justamente como uma forma de diminuir outras possibilidades de saberes.
então, se paramos e perguntamos para a história, para vida social, se as mulheres criavam, eram artistas, eram gênios, ela vai nos dizer que não. existem poucos registros do que elas faziam, mas de fato isso significa que elas não existiam?
também não é resposta simples. o quanto sabemos interpretar o que a história nos deixou? dentro da lógica de uma ciência neutra, pode-se até falar que pensar gênero ao longo do tempo é anacrônico, as visões de hoje não se encaixam no que era o passado. mas então, por que um homem de hoje sabe interpretar o passado da forma correta?
sem contar que, a ausência de registros também podem dizer algo. no artigo “Por que não houve grandes mulheres artistas?” da Linda Nochlin, podemos pensar em mais perguntas sobre a ausência de mulheres em vários momentos na história e que o não registro não quer dizer que elas não existiam.
mulheres não são colocadas como geniais por tratarem de temas banais do cotidiano? então, por que obras sobre cotidiano de grandes artisitas são ovacioandas?
mulheres não possuem talento? mas então por que grandes artistas foram aprendizes de outros artistas? e até, por que grandes filósofos foram mentorados por grandes pensadores antes deles? afinal, se talento é algo inato, não precisa ser aprendido.
então, o fato de não ter registro quer dizer que as mulheres viviam entocadas em casa, quietas, em completo silêncio, pensando vários nadas? se dizem ser anacrônico pensar gênero ao longo da história, também é envisado acreditar, com uma fé cega, de que os registros não possam ser manipulados, apagados e destruídos.
então, volto ao questionamentos: o quanto o conhecimento creditado a homens, no final foi roubado de uma mulher, ou mulheres?
só para exemplificar, você sabe a história da Mileva Marić? talvez você conheça o marido dela, um tal de Albert Einstein… Mileva foi a primeira esposa dele, a qual conheceu no Instituto Politécnico de Zurique, uma das poucas instituições de ensino que aceitavam mulheres. ela era tão brilhante quanto ele, ela também participava dos estudos que ele conduzia, mas claro de maneira informal, porque mulher não poderia exercer a profissão de física. ela deu contribuição importante ao trabalho dele, mas quantas vezes você viu o nome dela sendo creditado? quantas vezes você viu algum registro dele falando sobre o apoio dela?
com certeza algo difícil de se achar, mas não é complicado de ver o quanto ele afetou a saúde mental dela, corroendo seu cérebro de forma irreparável.
e eu adoraria falar que o caso dele é uma exceção, é raro, contudo, o padrão é isto, homens machucando mulheres em prol do seu engrandecimento e conhecimento.
sim eu vou falar da IZA
o timing da internet é mais rápido que velozes e furiosos. todo mundo fica muito puto e esquece tudo extremamente rápido. mas como este foi o chifre mais recente e que deu mais bafafá, vou fazer uso dele para seguir minhas ideias aqui.
se você teve sorte de sumir das redes sociais este último mês, explico. IZA terminou o relacionamento com o pai de sua filha porque descobriu que ele a estava traíndo. durante a gestação? não, durante todo o tempo que ele esteve com ela, ele tinha outra mulher.
argumentações de todos os tipos rolaram por aí, “ah porque a monogamia", “ah porque isso", “ah porque aquilo”, confesso que adoro a versão coitadolândia “se até a IZA foi traída, quem somos nozes??”.
mas faço coro a uma interpretação que está por trás do que a jornalista, Isabela Reis, trouxe sobre o caso em seu podcast, “Conselhos que você pediu". a traição diz muito sobre quem trai.
meus dois centavos de opinão estão dentro da ideia de que o homem precisa machucar a mulher que diz amar para aprender algo. seja no sentido que eu disse anteriormente, de roubar conhecimento dela, mas também de que ele não aceita ela tendo mais sucesso e dinheiro que ele, além de que a evolução emocional dele precisa ferir a mulher.
a ideia de não tolerar o sucesso dela é meio que óbvia, espero. a nossa estrutura é pautada no poder masculino, então nada pode estar acima dele. uma mulher tendo mais sucesso que você é uma afronta a sua masculinidade, então, como retaliação, você “a coloca em seu lugar", maltratando-a de alguma forma. você a machuca e pronto, o equilíbrio está restabelecido.
mas o lance da evolução emocional é uma ficha que foi caindo ao longo dos anos e caiu de vez, em uma conversa que estava tendo com meu namorado.
estávamos vendo um vídeo que conta umas histórias do reddit, o que estava sendo narrado era como um cara foi muito filho da puta com uma ex-namorada, porém, depois daquilo ele se tornou um cara muito melhor. claro, a ex guarda ressentimento dele, mas ele pensa nela com carinho, porque machucá-la foi importante para ele aprender uma lição.
e eu soltei o seguinte comentário: “por que todo homem precisa machucar uma mulher para aprender alguma coisa?”. na hora ele ficou meio confuso, mas aí pedi para ele pensar sobre isso e, enquanto ele pensava, eu dizia sobre como é comum o discurso de homens falando que depois da ex se tornaram um cara melhor, mas, se você conversar com a ex, ela irá relatar um trauma que ele deixou.
estranhamente, quero ampliar a ideia de Durkheim, presente em seu livro “Sobre o suicídio”, no qual ele pega vários dados sobre suicídio e tenta encontrar alguma explicação sociológica. a conclusão dele também é presente em alguns estudos sobre o tema. porém, o lance é o seguinte, quando se trata de suicídio masculino, ele sempre tem como alvo não só a si mesmo, mas alguém exterior também. e o que quero ampliar é que o homem tem essa necessidade, consciente ou inconsciente, de que, se ele vai ser machucado, ele tem que machucar alguém também.
e aqui você pode falar o quanto for sobre todos os dados de sofrimento psiquíco entre homens e que ninguém fala sobre isso, mas faço coro com a nação feminina ao redor do mundo: se homem fala que sofre em silêncio, por que eu não paro de ouvir sobre isto? e também, se vocês sabem que sofrem, por que vocês não fazem nada para resolver sem que isto envolva machucar mulheres?
quando eu começar a ouvir que o cara procurou ajuda porque percebeu, sem machucar alguém, que tinha uma questão importante para resolver, que tinha um sentimento que precisava lidar, ou qualquer outra epifania individual, aí eu levo mais a sério algumas coisas que ouço sobre o “sofrimento masculino”. mas enquanto eu e outras mulher tiverem que gastar rios de dinheiro com terapia, remédios e muitas outras coisas para lidar com os traumas gerados por homens, eu realmente não sinto pena dos pobis.
então, se relacionar com homens acaba sendo este risco constante de além de ter suas ideias roubadas, de ser machucada para ser evolução espiritual de marmanjo.
a solução vai ser não se relacionar com homens, mesmo sendo uma mulher hetero?
o tal do boysober
dentre todas as artimanhas que eu já vi mulher fazendo para lidar com homem, com certeza o boysober me chamou uma grande atenção.
se você não sabe, boysobre é a ideia de ficar sóbria de homem, sim igual droga, você para de sair com homens por um tempo definido ou não. entendo a ideia inicial que é meio que fazer um detox dos apps de encontro, você foca no cuidar de si e entender melhor o que é prioridade de fato. contudo, eu fico com receio de um efeito extremo, porque as pessoas são extremas e nunca conseguem fazer as coisas de forma equilibrada: entrar em modo boysober e abolir até a ideia de amor em sua vida.
eu sei que parte da nossa tentativa de entender o amor é tirar o olhar de fantasia de cima do amor romântico. a gente não vai ter a vida de conto de fadas, nem sempre o amorzinho da adolescência é para vida toda e a rotina de casal pode ser meio caótica, além disto, existe o amor dos amigos, da família, dos nossos pets, de nós com nós mesmas… existem muitos amores por aí, então, por que pensar nele?
vejo cada vez mais mulheres hetero falando que simplesmente não vão mais se relacionar, que não aguentam mais a frustração, os traumas. entendo, realmente é desgastante, contudo:
eu cresci com uma raiva gigante de homens e que foi aumentando a cada frustração amorosa, a cada história que eu ouvia de homem fazendo merda. fui muito consumida por uma lógica do feminismo branco que condena o amor de todas as formas, o amor é algo desnecessário, te enfraquece, porém eu não percebia que quem falava isto estava sendo amada.
eu realmente comprei esta lógica por muito tempo, contudo, ninguém te fala a beleza que é amar e ser amada. e mais ainda, o quanto isto pode te tornar ainda mais forte. não à toa, a bell hooks focava tanto em uma pedagogia pelo afeto e não pelo ódio, em como nós, mulheres, precisamos ter o amor, porque ele é o local no qual podemos descansar, ser nós mesmas.
quando a gente desiste de amar, o amor romântico mesmo, a gente deixa a estrutura ganhar, a gente arca com as consequências de algo que não é nosso, mas sim desta má postura de homens. porém, falo tudo isto sabendo que não tem saída, ou resposta fácil, porque no final do dia, estamos sujeitas ao homem que violenta em prol dele mesmo, em prol da manutenção do poder.
o boysober pode ser uma solução, afinal é algo temporário? eu acho que não. porque penso que você só foca na sua vida porque não tem um relacionamento, sendo que você precisa aprender a viver sua vida, mesmo tendo alguém junto.
se armar para não cair em cilada? duas coisas nisso, a gente ser quem precisava ficar o tempo todo atenta é chato a beça, não deveríamos ser quem ficar em alerta. e também, relacionamento demanda vulnerabilidade, ser vulnerável com uma arma na mão não é bem o caso.
e aqui eu realmente adoraria te dar uma resposta do que fazer, porque abdicar do amor é deixar tudo o que falei ganhar. é deixar o homem que te machucou ganhar, é deixar o homem que te roubou ganhar, é deixar sua grandeza encolher, é deixar seu potencial morrer.
eu digo para não desistir, mas, enquanto isso, vamos dando umas risadinhas de todas as reportagens que se questionam o porquê da taxa de natalidade estar diminuindo, de que mulheres não querem mais casar, que preferem focar na carreira… vamos ficar olhando até os homens descobrirem a resposta, porque no final do dia, eles não nos ouvem.
Para complementar a leitura:
o mínimo deveria fazer sua b****a secar, da Sara Polva.
quando você percebe que gosta de um tipo de homem pelo estilo de vida dele, da Beatriz Veloso.
as nuances da violência que o homem propaga em nós, da Gabriela Magalhães.
~baita argumento, realmente. eu confesso que ficava feliz e triste com o boysober exatamente por esse lance de fazer as mulheres jovens tirarem o hiperfoco dessa parte da vida... e aí ficava meio desconfortável pensando quais maneiras haveriam para quebrar esse ecossistema que faz a vida das minas girarem ao redor dos caras. pq é muito fácil a gente chegar e lançar essa braba pra elas quando na prática tem todo um material de mídia e a vivência na sociedade que as empurra para viver em função de homem. é um paradoxo mesmo.
infelizmente o backlash tá vindo pesado (como as tends de tradwife etc), mas eu tô esperançosa pq o movimento feminista também tá fortíssimo, mesmo com todos os rachas e disputas, ainda sim o básico do discurso anda bem mais sólido e presente do que na época que eu era adolescente, por exemplo, nos anos 2000.
enfim, adorei mesmo o texto. abraço!
Ótima reflexão! O único ponto positivo é que cada vez mais esses comportamentos ficam as claras. De alguma maneira, falar sobre nos dá ferramentas para lidar com eles.