este texto eu tentei minimamente planejar, ordenar as pautas, pensar numa linha de raciocínio, basicamente criar uma espécie de roteiro. porém, a vida gira muito rápido, muitas coisas acontecem e o que eu tinha pensado não faz tanto sentido no que quero falar aqui. mas é isto, depois deste prólogo, vamos ao texto! AH mais um adendo, lembre-se de que eu estou falando de um contexto cis-hetero, ok?
o que tinha me motivado inicialmente foi um vídeo de um antiquerido engraçadão, em seu casamento, com uma placa de HELP ME e com uma expressão de desespero. salvem ele da ruína completa que é o casamento para o homem. o casamento, que é a pior coisa que pode acontecer na vida de um homem, porque claramente eles casam pois estão sendo ameaçados de morte!
piada velha. lembro que desde criança olho isso com grande desdém. via aquelas camisetas escrito “game over” e me perguntava, até meio ingênua, se os homens odiavam tanto o casamento, por que cargas d’água eles casavam?
até porque, na minha visão, o casamento era só vantagens para os homens. ter uma esposa em casa que cuida dos filhos, da casa, do relacionamento, das responsabilidades com a vida e até com a saúde dele, claramente sendo ignorado o quanto ela negligencia a própria vida e saúde em prol de um núcleo familiar. apesar dessa minha visão meio infantil, no fundo ela não estava de todo errada. se você der uma pesquisadinha por aí, verá que homens casados vivem mais, possuem maior bem-estar de vida e mais uma lista de benefícios que eles irão obter com um casamento.
(também lanço o desafio para pesquisar sobre o efeito do casamento na vida da mulher, só um acaba saindo ganhando nessa brincadeira)
um adendo, mesmo se a mulher trabalhar fora de casa, ainda sim ela arca com todas as responsabilidades de uma dona de casa. então, se você é homem e está lendo isto, imagine trabalhar 8 horas fora de casa, chegar depois de pegar trânsito duas vezes no dia, ainda ter que buscar filho na escola, cuidar da comida do filho, do marido, limpar a casa, lavar roupa, ouvir o marido falando do dia (sem ouvir o dela), pensar nas responsabilidades do dia seguinte, tentar minimamente cuidar de si e ainda ter pique para transar, porque né, a gente cresce ouvindo que se não oferecer em casa o homem busca fora. no fundo, se a gente soubesse que já estamos abandonadas pelo homem que escolhemos amar, afinal, ele não se importa com toda a sua dimensão de tarefa doméstica, a gente tacaria o foda-se bem antes de um abandono formal.
no fundo, isto foi introjetando em mim um desgosto pela ideia de casar. vendo muitas mulheres da minha geração, não foi só eu quem começou a ter essa visão crítica com relação ao casamento como ele é posto até hoje.
em algum momento do ano passado um vídeo específico do tiktok circulou por aí e a reação dele foi curiosa. era uma mulher, em uma mesa de um restaurante sendo pedida em casamento. toda vez que o anel era colocado no dedo dela, via imagens de algo que retratei em cima. as jornadas infinitas de trabalho, a falta de acolhimento, o ser trocada por outra, filhos deixados para ela cuidar, isto deixou ela assustada, o que a fez negar o noivado. houve algumas variações desse vídeo, mas em suma era isso.
os comentários negativos vieram majoritariamente de homens, nos quais diziam que a culpa da falência do casamento era da mulher, hoje ninguém quer mais casar! o que para mim é curioso, quando homem fazia chacota da ideia de casar era engraçado, mas quando mulher faz e o faz mostrando o que é o casamento para nós, a categoria homem acha que é um absurdo, somos a causa do fato de relacionamentos não estarem durando mais.
o que, honestamente, não é mentira, porém algo não é colocado na mesa. vamos pensar um pouco sob uma perspectiva histórica.
sei que muita gente odeia ouvir que tudo o que vivemos é construção social, contudo, as coisas não surgem do nada e passam por um processo histórico para se estabelecerem.
meu primeiro contato com uma crítica ao casamento vem do Engels, dentro do seu livro “A origem da familia, da propriedade privada e do Estado", no qual ele discute como a família burguesa se institui, como ela é um espelho das relações capitalistas e como ela é fundamental para o seu estabelicimento. no momento que li, começou um pouco a faísca de questionar a estrutura familiar, a ideia de relacionamentos monogâmicos e como tudo isso foi montado como uma forma de aprisionamento da mulher, afinal, na família também temos a ideia de propriedade privada, pois ela é pertencente ao chefe de família.
hoje, talvez não gostaria de como ele fez a sua análise que, apesar de ter como base trabalhos antropológicos, os estudos em si já são questionável por si só. mas tudo bem, pois ele era contemporâneo desses trabalhos que usou como base.
outro momento foi com os estudos da historiadora Anne McClintock, que analisa o período vitoriano e o imperialismo britânico como sendo marcos de estabelicmentos de padrões sociais que temos até hoje. o que me marcou muito foi uma análise sobre o fetiche da limpeza e o exaustivo exercício para eliminar qualquer marca de trabalho no corpo das mulheres. neste momento vemos a família burguesa sendo cada vez mais consolidada e com isso o fato de que o ócio entre as mulheres era considerado um fator de classe importante.
o homem trabalha, a mulher fica em casa fazendo nada. isso siginifica que o homem ganha o suficiente para manter uma família em um conforto relativo e uma forma clara de verificar isso é as mulheres terem mãos limpas e sem calos. mulher com essa evidência é a mulher que não trabalha. mas, convenhamos, quantas famílias tinham condições de pagar empregados o suficiente para que a mulher não precisasse fazer o trabalho doméstico? pouquissímas, o que fez criar um hábito de tentar, ao máximo, invisibilizar as marcas deste trabalho, como consequência, hoje não vemos o trabalho doméstico como trabalho, na realidade nem enxergamos essa tarefa como algo de fato, até parece que a casa fica limpa do nada…
novamente, em que ponto o casamento é desvantagem para o homem sendo que ele nunca se responsabiliza pelo trabalho doméstico e nem pela higiene de si mesmo?
enfim, mais um pouco de história.
recentemente finalmente li o livro “O calibã e a bruxa” da Silvia Federici. talvez você já saiba um pouco do que ele se trata, mas devo dizer que ele falou muito menos sobre a questão do trabalho doméstico do que eu imaginava, no fundo a temática era a domesticação da mulher.
digo domesticação no sentido do aprisionamento da mulher ao ambiente familiar e doméstico, não numa parada meio mulher que corre com os lobos de uma loba aprisionada. acho que esse ponto é claro, mas como a internet tem um probleminha de limitação de compreensão, queria deixar isso claro, não quero trazer uma visão animalista sobre a mulher.
acredito que neste livro, a ideia de que as coisas se consolidam através de um processo histórico é bem claro. ela parte do momento incial do capitalismo, fim do feudalismo, aumento ferrenho do poder da igreja católica até mais ou menos a era vitoriana. com uma análise até que bem detalhada, levando em consideração a dimensão do período que ela pegou, consegue criar uma linha muito bem feita de como elementos da opressão sofrida pelas mulheres foram sendo montados.
este livro merece uma resenha mais detalhadas, se um dia tiver tempo para isto, mas ela trata dos elementos que levaram a desvalorização do trabalho feito por mulheres, algo que achei legal que não é só sobre o trabalho doméstico, mas também o trabalho sexual, o fato do conhecimento sobre o corpo ter saído das mãos de mulheres, afinal, uma consequência era o conhecimento de substâncias abortivas, para os homens tirando todo o poder que tínhamos sobre nós e também da criação narrativa de superioridade do homem para que, pricipalmente homens de classes baixas, não houvesse uma união com as mulheres para um combate contra quem estaria no poder. tudo isso aconteceu no que conhecemos como inquisição e caça às bruxas, que sim tinha uma grande motivação religiosa, mas também de gênero, classe e raça, já que parte da demonização de religiões não-cristãs também vieram para os territórios invadidos.
então, tudo isso aconteceu para que o casamento, como institução, tivesse apenas um benficiário: homens.
agora quero colocar um pouco mais de água no feijão.
essa semana me deparei com um apontamento e um questionamento. o apontamento era sobre a importância de mulheres terem afazeres que não envolvam seus parceiros, pois muitas vezes entramos em relacionamentos por puro tédio da nossa própria vida, sem contar que quando o relacionamento acaba, ao menos você tem algo para focar e não fica perdida sem rumo. o questionamento era se as mulheres, hoje, seriam capazes de abanonar suas carreiras para se mudar com o marido, cuidando da casa e dos filhos, levando em consideração que o homem ganha o suficiente para manter um conforto para todos.
para ambos os casos a ideia é a mesma: mantenha uma vida individual que não envolva seu parceiro.
até pouco tempo, ouso dizer até hoje, as mulheres abdicam de si em prol do homem. a carreira do homem é mais importante, a vida social do homem é mais importante, tudo que gira em torno do homem é mais importante, tanto que é normal a mulher ser quem irá ceder na relação, quando o homem cede, geralmente é tipo, o sabor da pizza, o lugar onde vão passar as férias…
e veja, bem, também não estou defendendo o homem ceder tudo em prol da mulher, acredito que ambos precisam ter uma vida própria, mas sim, penso a questão do modo contrário: o quanto os homens seriam capazes de abdicar da própria carreira pela mulher, levando em consideração que ela ganha o suficiente para bancar a família? e até ouso dizer um plus: que ela tenha um trabalho estável e renda nunca seria um problema.
acho que poucos, ou até mesmo nenhum. o casamento segue sendo uma instituição masculina, então, o que leva a poucos relacionamentos duradouros é que hoje mulheres possuem escolha, possuem carreira e possuem uma vida por si só. hoje a gente vê que a vida sozinha pode ser muita boa e há muitas formas de afeto além do romântico. hoje a gente faz piada sobre casamento mostrando o quanto os homens não fazem nada pela relação, mostrando que no fundo eles depedem da exploração do nosso trabalho doméstico, do nosso esforço para fazer tudo isso dar certo e quando deixamos claro que queremos equidade, nos tornamos monstras feministas que odeiam a família.
apesar de eu não defender muito aquele fala da Lady Gaga para as mulheres focarem em suas carreiras porque carreira não acorda no dia seguinte te abandonando, acho que dá para fazer uma versão melhor. se relacionem, mas não esqueçam de ter uma vida por si só, pois se um dia você acabar sendo abandonada, você consegue recomeçar tudo com maior facilidade.
e quero fechar com duas coisas.
acho que poucos homens entendem a gravidade que é pedir e desejar que sua mulher seja dona de casa. os homens, mesmo os mais progressistas, ignoram o tanto que homens abandonam suas mulheres, mesmo dizendo que as amam, que as traem, mentem, escondem coisas, mesmo dizendo que amam, mesmo a mulher tendo deixado tudo para trás para viver algo que ela achava ser um amor genuíno. e mesmo quando ela faz tudo isso, eles jogam na cara o quão folgada ela é, que ele dá duro pela família e ELA quem não reconhece. não existe equilíbrio de poder dentro de uma relação hetero-cis, pois as instituições ainda trabalham em favor do homem.
eu odeio casamento? como instituição sim, mas a ideia de uma vida a dois eu gosto muito. é complicado equilibrar esses pontos, principalmente com a limitação mental de muitos homens que levam tudo ao extremo. eu quero uma vida a dois em que as responsabilidades são equilibradas, em que existem dois indivíduos que se amam, em que cada um tenha suas coisinhas e que possa fazer suas cosinhas tranquilo. essa vida a dois, esse tipo de relação é a que eu quero e a que eu estou tentando construir agora.
no fundo, não é que a gente odeia casamento, só não vamos mais nos submeter ao nada que nos é oferecido como contrapartida. enquanto homens reclamam de casamento pela piada, mesmo sendo os maiores beneficiários dessa relação, mulheres sofrem com toda a carga mental e física dessa instituição, aguenta tudo isso para depois ser abandonada. e aí, meu caro, a questão é que a gente não vai mais aceitar esse tipo de postura.
Refs:
Anne McClintock - Couro Imperial: Raça, gênero e sexualidade no embate colonial (Unicamp, 2010)
Friedrich Engels - A origem da família, da propriedade privada e do Estado (Centauro, 2002)
Silvia Federici - O calibã e a bruxa (Elefante, 2023)
Dica de podcast: O episódio dessa semana sobre raiva da Gostosas também choram.